A menina e a mãe
Janaína Amado*
Quando a menina pequena abre os olhos de manhã cedo, pergunta logo Cadê mamãe? Neste dia não tem resposta. Nunca mais terá resposta a essa pergunta. Mazi disfarça, diz que a mãe foi ali e volta já, mas o dia inteiro se passa e a mãe não volta. Irritada, inquieta, a menina não consegue brincar, chora, não tem apetite: Não quero comer esta porcaria!, joga o prato em cima de Mazi.
A menina percebe que alguma coisa está profundamente errada. Não sabe o que é, porém seu
corpo alerta indica o perigo a rondar. Precisa da mãe ali para protegê-la, defendê-la. Chama por ela, chora por ela, mas desta vez a mãe não está ali junto, sumiu. Muito confusamente a menina intui que o problema é a mãe, a mãe é o problema, mas não entende, e chora.
Quando o pai enfim volta para casa, a menina voa em cima dele. Pula em seu pescoço, ansiosa: Cadê mamãe? Ele a põe no chão. A menina percebe que o pai não olha para ela, o olho dele está saindo pela janela, longe. Parece muito cansado, o seu pai. Cadê mamãe, cadê mamãe?, insiste. A resposta chega como surra:
— Mamãe está doente. Vai precisar ficar no hospital.
Doente? Mas mãe não fica doente! Pela primeira vez, o pai sorri. "Fica, sim. Lembra quando ela sentiu aquela dor de garganta e teve de ficar na cama? Estava doente." Mamãe tá com dor de garganta? Não. Tá com dor de dente? Não. Com dor de olho? De nariz? Andando atrás do pai, a menina vai repetindo a mesma pergunta, com a troca da última palavra. Não estava nem na metade da sua lista de partes do corpo, quando o pai dá um berro: "Chega! Me deixa em paz!" tão súbito e alto e aterrador que a menina escorraçada dispara rumo à cozinha, vai chorar no colo de Mazi.
Nesta noite, ela consegue dormir só muito tarde, depois de Mazi cantar o Sapo Cururu várias vezes e seus olhinhos se fecharem de exaustão.
Sonha com a figura forte da mãe ao seu lado, as duas caminhando juntas pela rua clara de sol, uma brisa que vem do mar levantando os cabelos delas, a sua mãozinha protegida dentro da mão firme da mãe. Ela observa admirada aquela mãe tão bonita, alta, elegante, empinada. Ri pra ela, de pura satisfação. Com mamãe, eu não tenho medo de carro. Não tenho medo de cachorro. Nem medo de sumir na multidão. Nem medo de esquecer o caminho de casa. Mamãe sabe. Mamãe conhece todos os caminhos. Mas no sonho então a mãe se vira para ela, rosto sério, e diz:"Estou perdida. Não conheço mais os caminhos."
A partir daí a vida da menina vira confusão barafunda anarquia desarranjo, ela aos trambolhões de uma casa pra outra, o pai o tempo todo no trabalho ou no hospital, Mazi dando adeus e indo embora, um monte de gente estranha em volta, seu mundo de ponta-cabeça, todas as coisas, todas as pessoas fora de lugar, pesadelo.
A menina pergunta a cada hora Por que mamãe tá demorando tanto? Ninguém sabe lhe responder. "Como contar a uma menina pequena que sua mãe ficou doida?", pensam. Quando mamãe vai voltar?, insiste. Ninguém conhece a resposta.
À hora de dormir, no escuro, a menina passa devagar a ponta da fronha no rosto, enquanto pensa perguntas que não tem coragem de dirigir aos outros: Por que mamãe não me disse aonde ia? Por que não me deu adeus, beijo, nada? Por que ela me deixou aqui sozinha?
No dia seguinte, retorna à pergunta habitual: Quando a mamãe vai voltar?
Aquela mãe nunca voltou.
A mãe que sabia todos os caminhos nunca voltou.
A filha não a esquece. Como poderia, se a vida inteira tem caminhado ao seu lado na rua clara de sol, passo a passo com a silhueta sem carnes, com a evocação do vulto esbelto, elegante, altaneiro, a vida inteira assombrada pela convivência íntima com o enigma, com a ausência gigantesca que entretanto misteriosamente ainda é capaz de lhe indicar caminhos?
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* Escrevi este texto há alguns anos. Neste dia das mães de 2013 publico-o aqui, em homengem a Jacinta Passos, minha mãe. A saudade que sinto dela não passa, é saudade do que foi e saudade do que poderia ter sido.
Foto: Jacinta Passos e sua filha Janaína, fevereiro de 1948.