27.11.11

Rubens Jardim escreve sobre Jacinta Passos e Orides Fontela























O grande poeta Rubens Jardim, em seu site, escreveu sobre as trajetórias de vida e a poesia de Jacinta Passos e Orides Fontela. O texto aponta aproximações entre as duas escritoras, apesar das diferenças de época e estilos poéticos entre elas: tanto Jacinta quanto Orides foram poetas inspiradas, libertárias, corajosas, independentes, que viveram existências difíceis e enfrentaram estigmas, entre eles o da loucura, sendo até há pouco tempo completamente esquecidas, e hoje ainda procurando um espaço. O texto de Rubens, abaixo reproduzido graças à generosidade do autor, integra a excelente série que o poeta vem postando na internet, "As Mulheres Poetas na Literatura Brasileira".

AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (12)

Rubens Jardim

Apesar das grandes dificuldades que cercaram a vida destas duas poetas libertárias, Jacinta Passos e Orides Fontela não cederam um milímetro em suas convicções. Ambas enfrentaram, em circunstâncias e tempos diversos, preconceitos e estigmas. E seus embates foram duríssimos.Só que as duas fizeram poesia de alta voltagem, sem frouxidão e derramamentos emocionais. E mereceram a atenção e o aplauso de nomes como Antonio Cândido, Sergio Milliet, José Mindlin e Maria Helena Chauí. Infelizmente, as duas morreram pobres e incompreendidas --em sanatórios. E só recentemente suas obras voltaram a ser publicadas. Presto aqui uma homenagem a elas, alterando o parâmetro da série de 4 poetas por cada postagem. O talento de Jacinta e Orides merece esta modificação --e este destaque. E eu quero contribuir com o resgate dessa poesia alheia a correntes e modismos.

JACINTA PASSOS(1914-1973) – poeta baiana, professora, jornalista, militante política e feminista, nasceu em família rural abastada da região de Cruz das Almas, no Recôncavo Baiano. Foi católica fervorosa e se transformou em comunista ardorosa, nas palavras da filha, Janaína Amado. Publicou 4 livros: Nossos Poemas(1941), Canção da partida (1945), Poemas políticos (1951) e A Coluna (1958),longo poema sobre a Coluna Prestes, empreendida na década de 1920,que buscava mudanças políticas para o Brasil.

Todos os livros de Jacinta tiveram edições pequenas, e estão esgotados há muito tempo. Canção de Partida, por exemplo, teve tiragem de apenas 200 exemplares, numerados e assinados pela autora e ilustrados por Lasar Segall. E embora tenha despertado interesse e atenção de nomes tão importantes como Mário de Andrade, Antonio Candido, Sérgio Milliet e Roger Bastide, a poesia vigorosa e libertária dessa poeta acabou caindo no esquecimento. Eu mesmo, que circulo nesse universo da poesia há mais de 40 anos, só muito recentemente tive acesso ao seu trabalho --e à sua trajetória marcada por tantos conflitos e dificuldades.

Mulher excepcional, no sentido mais literal da palavra, Jacinta Passos abandonou a formação religiosa, comum na época, e passou a lutar, a partir do início da Segunda Guerra Mundial pela paz mundial, contra o fascismo, a opressão das mulheres e das minorias exploradas--conforme destaca Eliane F.C.Lima, em seu blogue.

Mas bem antes disso, quando tinha uns 18 anos, o catolicismo convencional de Jacinta já começou a migrar para o catolicismo social. Aquele que provocou e ainda provoca polêmicas e dissenções. Exemplar é o caso da Teologia da Libertação, tão influente na América Latina,e que acabou levando um de seus mais renomados integrantes, Frei Leonardo Boff, a ser julgado pelos tribunais do Vaticano.O viés desse catolicismo social, formulado pela encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, procurou oxigenar e aproximar a igreja católica de uma nova realidade, desenvolvendo noções como a de bem comum (os bens comuns seriam de responsabilidade de toda a sociedade) e a de destinação universal dos bens (os bens deveriam ser divididos com igualdade entre os homens)

Segundo sua filha, Janaína Amado, responsável pela publicação do livro Jacinta Passos, Coração Militante (2010), sua mãe vivenciou paixões intensas: por homens que a amaram, pela filha da qual foi afastada e pelo partidão onde permaneceu 30 anos na experiência clandestina. O calvário de Jacinta Passos começou em 1951, quando ela passou a sofrer crises nervosas e delírios persecutórios. Diagnosticada como esquizofrênica , vivenciou a violência extrema de diversos internamentos em sanatórios, tratada a eletrochoques, injeções de insulina e isolamento severo.

“Mas jamais deixou de escrever. Em Aracaju, por volta de 1962, foi morar sozinha em um povoado de pescadores. Vivia muito pobremente, em um barraco de madeira, mas possuía uma máquina de escrever, onde, à noite, datilografava poemas e textos políticos, que distribuía pelas ruas durante o dia.”

Janaína conta, ainda, que mesmo após o golpe militar de 1964, Jacinta Passos não abandonou a intensa militância junto a pescadores, estudantes e trabalhadores.”Em 1965 foi detida quando pichava muros da cidade com palavras de ordem contrárias à ditadura. Foi recolhida ao 28º BC de Aracaju e depois transferida para a Casa de Saúde Santa Maria, onde permaneceu até morrer, aos 57 anos, no dia 28 de fevereiro de 1973.” O livro Jacinta Passos, Coração militante, lançamento conjunto das Editoras Corrupio e Edufba em junho de 2010, reúne todo o material encontrado a respeito de Jacinta Passos. Contém ainda poemas esparsos, originalmente publicados em jornais e revistas, jamais reunidos em livro.E uma bela biografia que mostra a trajetória singular da poeta, bem como sua fidelidade às idéias e valores que a levaram a chocar-se contra tudo e contra todos— na contramão do tempo.

Canção do amor livre

Se me quiseres amarCantigas das mães
não despe somente a roupa.

Eu digo: também a crosta
feita de escamas de pedra
e limo dentro de ti,
pelo sangue recebida
tecida
de medo e ganância má.
Ar de pântano diário
nos pulmões.
Raiz de gestos legais
e limbo do homem só
numa ilha.

Eu digo: também a crosta
essa que a classe gerou
vil, tirânica, escamenta.

Se me quiseres amar.

Agora teu corpo é fruto.
Peixe e pássaro, cabelos
de fogo e cobre. Madeira
e água deslizante, fuga
ai rija
cintura de potro bravo.

Teu corpo.

Relâmpago, depois repouso
sem memória, noturno.

(para minha mãe)

Fruto quando amadurece
cai das árvores no chão,
e filho depois que cresce
não é mais da gente, não.

Eu tive cinco filhinhos
e hoje sozinha estou.
Não foi a morte, não foi,
oi!
foi a vida que roubou.

Tão lindos, tão pequeninos,
como cresceram depressa,
antes ficassem meninos
os filhos do sangue meu,
que meu ventre concebeu,
que meu leite alimentou.
Não foi a morte, não foi,
oi!
foi a vida que roubou.

Muitas vidas a mãe vive.
Os cinco filhos que tive
por cinco multiplicaram
minha dor, minha alegria.
Viver de novo eu queria
pois já hoje mãe não sou.
Não foi a morte, não foi,
oi!
foi a vida que roubou.

Foram viver seus destinos,
sempre, sempre foi assim.
Filhos juntinhos de mim,
Berço, riso, coisas puras,
briga, estudos, travessuras,
tudo isso já passou.
Não foi a morte, não foi,
oi!
foi a vida que roubou.

Diálogo na sombra

– Que dissestes, meu bem?

– Esse gosto.
Donde será que ele vem?
Corpo mortal.
Águas marinhas.
Virá da morte ou do sal?
Esses dois que moram no fundo e no fim.

– De quem falas amor, do mar ou de mim?

Canção atual

Plantei meus pés foi aqui
amor, neste chão.

Não quero a rosa do tempo
aberta
nem o cavalo de nuvem
não quero
as tranças de Julieta.

Este chão já comeu coisa
tanta que eu mesma nem sei,
bicho
pedra
lixo
lume
muita cabeça de rei.
Muita cidade madura
e muito livro da lei.

Quanto deus caiu do céu
tanto riso neste chão,
fala de servo calado
pisado
soluço de multidão.

Coisas de nome trocado
– fome e guerra, amor e medo –
Tanta dor de solidão.
Muito segredo guardado
aqui dentro deste chão.
Coisa até que ninguém viu
ai! tanta ruminação
quanto sangue derramado
vai crescendo deste chão.

Não quero a sina de Deus
nem a que trago na mão.
Plantei meus pés foi aqui
amor, neste chão.

1935

Tenso como rede de nervos
pressentindo ah! novembro
de esperança e precipício.

Fruto peco.

Novembro de sangue e de heróis.

Grito de assombro morto na garganta,
soluço seco dor sem nome. Ferido.
De morte ferido. Como um animal ferido. Luta
de entranhas e dentes. Natal.
Sangue. Praia Vermelha.

Sangue.
Sangue. É quase um fio
escorrendo
sangrento
tenaz
por dentro dos cárceres,
nas ilhas
e nos corações que a esperança guardaram.


Eu serei Poesia

A poesia está em mim mesma e para além de mim mesma.
Quando eu não for mais um indivíduo,
eu serei poesia.
Quando nada mais existir ente mim e todos os seres,
os seres mais humildes do universo,
eu serei poesia.
Meu nome não importa.
Eu não serei eu, eu serei nós,
serei poesia permanente,
poesia sem fronteiras.

ORIDES FONTELA (1940-1998) - poeta paulista de São João da Boa Vista, interior de São Paulo. De família muito pobre, seu pai era operário analfabeto, viveu sempre em dificuldades financeiras. Aos 27 anos, depois de cursar a escola normal na terra natal, veio morar em São Paulo e realizar dois sonhos: entrar na USP e publicar um livro.

Fez filosofia, exerceu o magistério e trabalhou como bibliotecária na rede estadual de ensino.

Desde o primeiro livro, Transposição(1969), o discurso apurado de Orides Fontela está marcado pela contenção e pela economia verbal. Aliás, essa característica foi destacada por todos os críticos que se ocuparam de seus livros. Alguns apontaram, nessa marca personalíssima, reverberações da poesia descarnada de João Cabral. Outros, falaram da impessoalidade, da busca pela palavra exata e o culto a um silêncio esfíngico. O certo mesmo é que seus poemas são despidos de tudo o que pode ser considerado acessório e dispensável em poesia. A produção de Orides encontra-se publicada em seis obras, todas de poesia: Transposição (1969), Helianto (1973), Alba (1983), Rosácea (1986), Trevo (1969-1988, reunião de todas as outras obras) e Teia (1996). A única obra em prosa foi Almirantado, publicada no número 4 do caderno Almanaque de literatura e ensaio (1977). Segundo o poeta Donizete Galvão “ela reconhecia que era áspera, sem travas na língua e que se indispunha com as pessoas.” E a comprovação desse seu temperamento explosivo são essas palavras pinçadas pela poeta Nydia Bonetti:“Reclamam, porque eu não falo de amor. Mas então não leram Homero... Eu quis chegar no miolo das coisas. Já fiz duas leituras para auditório de jovens e eles gostaram muito. Isso me deixa reconfortada. Mas, infelizmente, nossos especialistas ainda têm uma visão muito olímpica da poesia. (...) Mas é a velha história: é melhor que falem mal, mas falem de mim. Eu preciso de dinheiro para viver. Minha vida é um retrato da vida dos aposentados do Brasil. E a vida dos poetas no País. Eu queria ser mais enxuta, queria escrever poemas exemplares à moda de Brecht. Sei que não agrada, porque a moda hoje é o barroquismo. A moda é escrever como o Alexei Bueno. A moda é ser difícil. É um fenômeno sociológico e não adianta discutir com os fatos da sociologia. Não quero ir contra ninguém, só quero escrever meus poemas. (...) Eu sou pequena, pobre mulher que escreve uma poesia boa, mas, coitada, não é do meio. Não tenho família, não tenho bens, não freqüento os lugares chiques. É como se eu estivesse invadindo o Olimpo.”

Tão verdadeira e por isso tão poética, Orides Fontela recebeu o prêmio Jabuti de Poesia, em 1983, com Alba , e o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte, em 1996, com Teia . Sempre com dificuldades financeiras, no final da vida, acabou sendo despejada de seu apartamento no centro da cidade e foi viver com sua amiga Gerda na Casa do Estudante, um velho prédio na Avenida São João. Era uma pessoa irritadiça e muitas vezes se meteu em encrencas, brigando com seus melhores amigos. Morreu em Campos de Jordão, aos 58 anos, no dia 4 de novembro de 1998, de insuficiência cardiopulmonar, na Fundação Sanatório São Paulo.Em 2006, parte da obra de Orides --"Transposição", "Helianto, "Alba", "Rosácea" e "Teia"-- foi compilada em um exemplar pela Cosac Naify, POESIA REUNIDA com bibliografia ampla e atualizada.

o espelho dissolve
o tempo o espelho aprofunda
o enigma o espelho devora
a face

AXIOMA

Sempre é melhor
               saber
               que não saber.
             
               Sempre é melhor
               sofrer
              que não sofrer
             
              Sempre é melhor
              desfazer
             que tecer

FALA

Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real nunca é suave.

Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.

Tudo será
capaz de ferir. Será
agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.
Não há piedade nos signos
e nem no amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere.
(Toda palavra é crueldade)

TEIA

A teia, não
mágica
mas arma, armadilha

a teia, não
morta
mas sensitiva, vivente

a teia, não
arte
mas trabalho, tensa

a teia, não
virgem
mas intensamente
prenhe:

no
centro
a aranha espera.

AS SEREIAS

Atraídas e traídas
atraímos e traímos

Nossa tarefa: fecundar
                      atraindo
nossa tarefa: ultrapassar
                      traindo
o acontecer puro
que nos vive

Nosso crime: a palavra.
Nossa função: seduzir mundos.

Deixando a água original
cantamos
sufocando
o espelho
do silêncio

DESTRUIÇÃO

A coisa contra a coisa:
a inútil crueldade da análise.
O cruel saber que despedaça
o ser sabido.

A vida contra a coisa:
a violentação da forma,
recriando-a em sínteses humanas
sábias e inúteis.

A vida contra a vida:
a estéril crueldade da luz
que se consome
desintegrando a essência
inutilmente. 

19.11.11

Canção atual: Jacinta Passos, uma novantiga poeta



Ela vivenciou a Bahia do início do século XX, imersa na experiência longa e recente da escravidão: senhores e senhoras, os brancos baianos, alicerçados em terras, religião, racismo e alianças políticas, mandavam, enquanto o povo humilde, analfabeto, negro ou mulato obedecia sem remuneração, ao som de suas danças afro-brasileiras e suas revoltas.

Ela vivenciou a Salvador dos anos 1930 e início dos 40, quando a pequena e provinciana cidade da Bahia despertava para os debates literários que rompiam com a tradição parnasiana, para o movimento das esquerdas e das agitações estudantis, as passeatas exigindo nas ruas o fim da Segunda Guerra e das ditaduras, na Europa e no Brasil.

Ela vivenciou a pequena porém agitada São Paulo de meados dos anos 40, quando os intelectuais se uniram para fundar a Associação Brasileira de Escritores e contribuíram para a restauração da democracia no país, quando o Partido Comunista do Brasil foi pela primeira vez legalizado, elegendo Luiz Carlos Prestes e outros para comporem a Assembléia Nacional Constituinte, na democracia.

Ela vivenciou a fervilhante capital da República do inicio dos anos 50, o Rio de Janeiro onde tudo acontecia, da vida noturna trepidante ao vigor dos debates intelectuais e das decisões políticas fundamentais, o centro da vida do país.

Ela vivenciou paixões intensas, por homens que a amaram e alguns a abandonaram. Vivenciou a maternidade, gerando uma filha da qual foi afastada. Vivenciou durante três décadas a experiência ilegal, clandestina e estigmatizadora de militante do Partido Comunista, tendo sido presa. E, a partir de 1951, vivenciou a violência extrema dos diversos internamentos em sanatórios, tratada a eletrochoques, injeções de insulina e isolamento severo, vindo a morrer quando internada.

Todas essas vivências, ela expressou no jornalismo — foi uma das mais ativas jornalistas da Bahia na década de 1940 — e, sobretudo, na poesia. Rabiscando poemas desde muito jovem, publicou em vida quatro livros de poesia elogiados pelos maiores críticos e intelectuais da época (Aníbal Machado, Gabriela Mistral, Oswald de Andrade, José Paulo Paes, José Mindlin, Antonio Cândido...), e escreveu literatura, em poesia e prosa, durante toda a vida, inclusive quando interna, até a véspera de sua morte.

Estamos falando de Jacinta Passos (1914-1973), poeta, escritora, intelectual e jornalista nascida de família rural abastada em Cruz das Almas, Recôncavo da Bahia, católica fervorosa que se transformou em comunista ardorosa, mulher de hábitos livres num Brasil machista, casada em 1944 com o jornalista e escritor James Amado (irmão de Jorge Amado) e, a partir de 1951, diagnosticada como esquizofrênica paranóide, separada e sozinha, vindo a falecer como louca em um sanatório de Aracaju.

As trajetórias literária e humana de Jacinta Passos ficaram esquecidas nas décadas seguintes à sua morte, pois as pequenas tiragens de seus livros estavam esgotadas, pouco se sabendo sobre sua existência atribulada. Recentemente, a poeta voltou a ser alvo de interesse, com a publicação de uma primeira biografia (Dalila Machado, A história esquecida de Jacinta Passos. Salvador, 2000), de um livro de ensaios (Gilfrancisco, Jacinta Passos: a Busca da Poesia. Aracaju, 2007), de uma monografia de Especialização (Danielle Fuad, Passagem de Jacinta Passos pelo Jornal “O Imparcial” (1943). Salvador, 2008), e de Jacinta Passos, coração militante (Salvador, Edufba/Corrupio, 2010), volume organizado por sua filha Janaína Amado, que reúne toda a poesia e a prosa, inclusive a inédita, de Jacinta, uma nova biografia, sua fortuna crítica, diversas fotografias — que revelam uma belíssima mulher — , além de ensaios de escritores e críticos produzidos especialmente para a edição. Foi criado ainda o site http://jacintapassos.com.br.

A poesia de Jacinta Passos, que apenas começa a ser desvendada, é lírica e política, as duas vertentes muitas vezes se mesclando. Seu primeiro livro, Momentos de poesia, de 1942, revela a profunda experiência mística da autora: Senhor,/eu quis fazer de minha vida/meu mais belo poema em teu louvor. Ou:Ouço vozes estranhas/[...]São vozes de sofrimento, de amarguras,/vozes de todas as criaturas/que falam por minha voz./Todas as criaturas que sofreram/ esta ânsia indefinida/ – angústia milenária como a vida –/ de querer atingir o inatingível (O Mar).

A experiência avassaladora do amor está presente desde o primeiro livro: Existimos fundidos num ser único/ que ignora a sucessão no tempo, [...] como um astro sem memória perdido no espaço sem princípio e sem fim (O Momento eterno). Nos segundo e terceiro livros, Canção da partida, de 1945, e Poemas políticos, de 1951, o amor desabrocha em erotismo: Agora teu corpo é fruto./Peixe e pássaro, cabelos de fogo e cobre./ Madeira e água deslizante, fuga/ ai rija/ cintura de potro bravo (Canção do amor livre).

Dois outros temas são caros à poesia de Jacinta Passos: a política e a situação da mulher, o segundo contido no primeiro. Seu último livro, A Coluna, de 1958, é um longo poema épico sobre a Coluna Prestes. Mas raramente Jacinta foi panfletária. Seus versos transformaram política em boa poesia, como em “1935”, sobre a fracassada revolta comunista deste ano, que assim começa: Tenso como rede de nervos/pressentindo ah! Novembro/ de esperança e precipício./Fruto peco. É sobretudo a mulher pobre, duplamente oprimida, a protagonista de vários versos de Jacinta: Nós somos gente marcada/– ferro em brasa em boi zebu –/ninguém precisa dizer:/ Bernadete, quem és tu? (Canção da partida). E: [...] Mulher virgem, condição/para homem dar – nobre gesto –/ resto duma divisão/ se a divisão deixou resto./[...] A flor caída no rio/que a leva para onde quer,/sabia disso e caiu,/seu destino é ser mulher (Canção simples).

Mas talvez seja a evocação da infância “o princípio organizador da obra de Jacinta Passos”, como concluiu o poeta Fernando Paixão. Em seus poemas líricos que evocam a cultura popular de sua Cruz das Almas natal, Jacinta “se apropriou do espírito narrativo do povo e o devolveu crescido e com roupagem nova”, explicou o escritor e crítico Ildásio Tavares. E Jacinta sai cantando: Boi da cara preta não não meu boizinho,/ não pegue neném, não, ele é meu filhinho (Cantiga de ninar). Ou: Camilo, você é pobre/e nunca foi senador,/mas por que é igualzinho/ao retrato de vovô? Ou ainda: Tanta laranja madura/ai tanta!/que aroma vem do quintal./A maré já deu passagem/cresce meu canavial/minha vara de condão/cavaleiro, teu punhal./ Jasmim da noite floriu./ Jasmim./Acabou-se o bem e o mal./Já tirei os meus sapatos,/Vesti meu manto real (Chamado de amor).

Janaína Amado
(Publicado originalmente em Sidarta - jornal de artes e personagens, editado por Sônia Coutinho nº 12.)

*Imagem - foto de Jacinta publicada em Momentos de Poesia, de 1942. 

5.11.11

Espero vocês na Bienal da Bahia, neste domingo!

 O último evento do Café Literário da 10ª Bienal do Livro da Bahia, neste domingo, 06, às 20 horas, tem o tema "Biografia: Em Busca de Uma Grande História". Participação do jornalista e produtor musical Nelson Motta, que está lançando biografia de Glauber Rocha e provocando forte reação, da historiadora Janaína Amado, que produziu uma biografia sobre a poetisa Jacinta Passos, sua mãe, e de Jorge Ramos. O mediador será o jornalista e escritor José de Jesus Barreto, que vai se valer da polêmica para discutir as questões relativas à biografia.