(Publicado no Suplemento “Prosa & Verso”, jornal O Globo, Rio de Janeiro, sábado, 29/01/2011)
Relato afetivo de um drama político e familiar
Trazer a público a trajetória e a obra de uma intelectual brasileira ligada ao Partido Comunista em meados do século passado, e esquecida hoje, não deveria ser problema para uma pesquisadora experiente no ramo, com vários livros de História publicados. Mas quando o objeto de estudo é a própria mãe, que não a criou e que passou longos anos de sua vida em clínicas psiquiátricas e sanatórios, o assunto se torna, no mínimo, delicado. E é assim, com extrema delicadeza e cuidado, que Janaína Amado reconstrói os passos de sua mãe, resgatando seus poemas, palestras, artigos de jornais, no belo Jacinta Passos: coração militante.
Num interessante jogo de distanciamento histórico e proximidade afetiva (ou vice-versa), Amado consegue montar um retrato vívido de uma mulher que enfrentou a família (de proeminentes fazendeiros e políticos baianos), a sociedade (que viu a jovem professora católica se transformar em uma ardente jornalista, abandonar a religião e se casar com um rapaz muito mais jovem) e o regime (primeiro o de Vargas e depois o dos generais de 1964). Uma mulher que lutou sem parar pelas ideias em que acreditava, que tomou as rédeas de sua própria vida e que perdeu muitas batalhas, mas que foi derrotada pela esquizofrenia – e por tudo o que significava, e continua significando, um diagnóstico como esse.
Recuperar essa história significa remar contra décadas de silêncio, da família, do mercado editorial, mas também do círculo político e intelectual que a acolheu e depois a excluiu, de diferentes maneiras. Jacinta era casada com James Amado, irmão de Jorge, e conviveu com os principais escritores e artistas de esquerda da época, especialmente em São Paulo. Foi uma das mais ativas jornalistas da Bahia, com posições firmes sobre a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial, a necessidade de organização das mulheres e o papel dos intelectuais na política brasileira. Chegou a ser candidata a deputada federal constituinte pelo PCB em 1945 e a deputada estadual em 1947.
Em 1951 ela estava morando no Rio de Janeiro com o marido quando, após um surto, é internada pela primeira vez (aos 37 anos), começando um tratamento à base de eletrochoques, insulina e barbitúricos. Suas crises e alucinações estavam sempre relacionadas com perseguições políticas, “expressavam cercos, agressões, torturas e assassinatos praticados pela repressão”. Jacinta foi presa duas vezes, fazendo discursos nas ruas e pichando muros, mas era liberada com a alegação da família de que tinha problemas mentais. Em 1953 seu casamento acaba e ela volta para Salvador em 1955 – sem marido e com o estigma do internamento, ela perde também seu espaço na vida política e intelectual da cidade.
A sua situação se agrava em 1958, quando ela exige a guarda da filha. Para evitar ir aos tribunais, o ex-marido pede a Carlos Marighela, dirigente do PCB e amigo do casal, que lhe diga que o partido decidiu mandar a menina à União Soviética, para estudar. Essa falsa viagem marca uma separação de 12 anos com Janaína que, quando decide finalmente revê-la, ainda no sanatório, não é reconhecida por ela como sua filha. Jacinta morre em 1973, internada, aos 57 anos de idade.
Jacinta Passos: coração militante traz a íntegra de sua poesia (os quatro livros lançados entre entre 1942 e 1958, todos em pequenas tiragens, apenas um dos quais reeditado, mas também seus poemas esparsos, nunca antes publicados em livro), seus artigos de jornal e textos em prosa e verso escritos nos últimos anos de sua vida (havia ainda sete livros inéditos e uma série de manuscritos, mas eles foram queimados pela irmã e pela mãe, temerosas por seu conteúdo revolucionário). Reúne a fortuna crítica sobre ela, incluindo artigos de Mário de Andrade e Antonio Candido, e traz um conjunto de estudos inéditos sobre sua obra. Há também belas fotos da poeta e sua família, além dos desenhos que Lasar Segall fez especialmente para o segundo livro de Jacinta, Canção de partida, publicado em 1945.
Mas talvez o mais importante da obra seja justamente a biografia escrita por Janaína Amado – um trabalho meticuloso, feito a partir de pesquisa e entrevistas com as pessoas que conviveram com Jacinta, incluindo suas próprias memórias de menina, quase sempre desconfortável, quando não assustada, diante da mãe exigente, com quem se encontrava nas férias e nas raras visitas ao sanatório. É a biografia que nos permite valorizar a obra de Jacinta Passos, reintroduzi-la na história da imprensa, da política e da literatura brasileira, fornecendo novas possibilidades de leituras sobre esse período da história cultural do país.
O livro não deixa de ser uma homenagem a essa intelectual, mas é também uma forma de dizer que a mãe não foi renegada, nem esquecida. Marca, ainda, a necessidade de lembrarmos daquelas que vieram antes de nós e que abriram os caminhos para a independência das mulheres, mesmo que com um alto custo para si próprias.
Regina Dalcastagnè
(Professora de literatura da UnB e pesquisadora do CNPq)
Janaína Amado (org.) – Jacinta Passos: coração militante (poesia, prosa, biografia, fortuna crítica). Salvador: EDUFBA/Corrupio, 2010, 574 páginas.
[*Imagem: foto de Jacinta e Janaína, Rio de Janeiro, 1951; arquivo particular de Janaína Amado)